Quando nos apresentamos como advogados ou advogadas criminalistas, é comum ouvirmos a pergunta – ou mesmo a afirmação:

“Você defende bandido (?)”.

Normalmente a afirmação ou a indagação chega em tom jocoso ou de espanto, neste último caso devido ao fato de as pessoas nos considerarem “cidadãos de bem”, e assim estarmos estranhamente “trabalhando para o crime”.

Se defendemos ou não bandidos…vamos buscar responder, ao final deste singelo manifesto.

Um esclarecimento: é um texto dirigido ao público jurídico, e mais especificamente a advogados criminalistas iniciantes ou tencionados a migrar para a área penal. Mas evitamos ao máximo a utilização de termos técnicos e de “juridiquês”, de maneira a ser acessível também a leigos curiosos acerca da nossa profissão, a qual, a nosso sentir, é a segunda mais detestada do mundo, só ficando atrás da própria “profissão de bandido” (!).

E, claro, comentários, reflexões e contribuições de colegas criminalistas serão sempre apreciados!

“DE QUE LADO” ESTÃO OS CRIMINALISTAS?

Primeiro, um questionamento pertinente, o qual talvez já tenha passado pela mente de muitos, e em algum momento, até de cada um de nós, criminalistas: de que lado estamos?

Ora, estamos do lado da Constituição, das leis e da justiça. Bem, quase sempre, pois existem sim profissionais prontos para desvirtuar nossa nobre missão com práticas espúrias e até em si mesmas criminosas. Aliás, como em qualquer profissão. Mas esses são exceções; a grande maioria do contingente da advocacia criminal é conformada por homens e mulheres de seriedade indene, exercendo função lícita e propiciando com seu árduo labor o sustento próprio e da família.

Nunca é demais lembrar o teor do art. 133 da Constituição: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” Está em voga dizer que o óbvio às vezes tem que ser dito: a obviedade do dispositivo maior, apesar de assim categorizada, merece ser lembrada, pois ainda há juízes, promotores, delegados, policiais civis e militares, além de autoridades administrativas, inaptos para compreender seu teor. Pensam, generalizando a partir de “maçãs podres”, ou simplesmente buscando manter seu status quo autoritário, que a advocacia é um entrave, um obstáculo, só atrapalha. Normalmente, em regra, pensam assim até precisar de um advogado…

Sob uma outra perspectiva, podemos dizer que também estamos do lado das pessoas, dos seres humanos. E, nesse contexto, considerando o plano jurídico em si, e conforme a casuística se nos apresenta, é fato: às vezes estamos do lado da vítima, às vezes do lado do acusado, e às vezes até do(s) lado(s) dos dois.

Dos dois?!

Pois é, pensemos inicialmente em uma conciliação no Juizado Especial Criminal, ou em um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). No mais das vezes, o resultado, fruto da atitude de profissionais preparados em ambos os corners, é um ganha-ganha, como se diz na teoria da negociação. Ou seja, bom para ambas as partes.

Pensemos, agora, no advogado chamado para fazer valer sua função típica: ser parcial e comprometido com o direito do cliente, lutar pelos direitos e pelas liberdades deste, em âmbito particular, administrativo ou judicial.

Quando do lado da vítima, elaborando uma notícia crime, uma queixa-crime, uma representação, ou exercendo a assistência à acusação, o advogado busca uma resposta justa para o delito, trabalha em prol da prevenção geral, da prevenção especial. Através de sua atuação, pode propiciar um efetivo desestímulo à reiteração criminosa. Vela, ainda, pela justa indenização, pela reparação do dano para aquele cujo direito restou vilipendiado por determinada ação em tese criminosa.

Entretanto, o papel exercido pela advocacia criminal, em massiva maioria, é mesmo no lugar da defesa, papel este a merecer maior espaço em nossa reflexão.

A defesa, enquanto realidade ontológica, beira ou se confunde com o arquetípico. Os seres da criação, em toda a natureza, ostentam mecanismos de defesa. A psique, invariavelmente, nos dirige a partir de mecanismos de defesa. O próprio Direito se proclama como um instrumento de defesa da justiça e da paz social; por isso defendemos a Constituição e as leis. O Direito Penal em si é uma estrutura pretensamente destinada à defesa de bens jurídicos relevantes para a sociedade, utilizado (ao menos na teoria) como último aparato jurídico, quando tenham falhado outros ramos do Direito.

Nós, criminalistas, não defendemos o crime, ao contrário do pensamento simplista e equivocado às vezes propagandeado e incutido na percepção popular. Defendemos, além evidentemente da aplicação da lei, as pessoas, em especial de ataques arbitrários a seus direitos.

Diz o Código de Ética da advocacia, em seu art. 21: “É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado.” A defesa criminal é, pois, um direito, e um dever, o qual deve ou deveria estar, sempre, na escolha das causas, submisso ao Tribunal da Consciência de cada advogado.

Desde já é bom advertir: muitas vezes chegam a nossos escritórios casos de pessoas inocentes. Muitos duvidam e tratam com chacota esta máxima. Porém nós, da labuta criminal cotidiana, assim o confirmamos…

E se…o investigado ou acusado for culpado?

Resposta categórica: não deixa, por isso, de possuir direitos, garantias e prerrogativas. Inclusive, se considerado culpado pelo julgador ao final de um devido processo legal, tem direito a uma pena justa, dentro dos limites da lei.

Há livros inúmeros a orientar aqueles que pretendem iniciar na prática penal, ajudando a compreender a advocacia criminal em sua essência filosófica e técnica. A nosso sentir, são indispensáveis, por exemplo, Dos delitos e das penas, de Beccaria; As misérias do processo penal, de Carnelutti; Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica, de Aury Lopes Jr.; Criminologia Analítica, de Joe Tennyson Vello; Direito Penal do equilíbrio, de Rogério Greco; Criminologia Clínica e psicologia criminal, de Alvino Augusto de Sá. E em termos de compreensão do garantismo penal, impreterível conhecer as ideias contidas em Direito e razão, de Luigi Ferrajoli.

Compreender a alma da advocacia criminal depende da compreensão de dois fatores: da figura do ser humano dito criminoso e das figuras da estrutura jurídica, tanto da lei penal material quanto do processo criminal. Em outras palavras, compreender o aspecto humano e o aspecto legal.

QUE(M) É O CRIMINOSO?

“Bandido”, no dicionário, surge com a seguinte definição: “sm Assassino, facínora, fora-da-lei; bandoleiro.” (Melhoramentos, Minidicionário da língua portuguesa, pág. 61)

Desde a feitura de tipos penais, os quais definem juridicamente quem será considerado criminoso precisamente por afrontá-los, há uma seletividade de condutas por parte dos detentores do Poder. Não se pode olvidar a relatividade do que é considerado ou não crime no tempo e no espaço: o crime de ontem não é o de hoje e não será o de amanhã, e o crime daqui não o é acolá. E vice-versa. De qualquer sorte, tomemos o padrão jurídico brasileiro hodierno: Considera-se criminoso, em apertada síntese, aquele que infringiu uma lei penal.

E este seria um ser anômalo, primitivo, cujas inclinações atávicas não são comumente controladas, absolutamente diferente do (normalmente autointitulado) “cidadão de bem”?

Sob o prisma humano, Joe Tennyson Velo nos dá pistas para compreender algo simples e relevante acerca da pessoa que comete um crime, trazida a nosso tratamento profissional:

“No atual contexto político criminal é de todo prudente pensar que entre o criminoso e o sujeito que pronuncia esse aí é um criminoso, o que devo fazer para julgá-lo ou orientá-lo, estabelece-se um enorme distanciamento, que não é mais o vazio da indiferença do não sou esse aí, ele não tem nada a ver com minha natureza, mas que está ocupado pela plenitude de implicações que o  não pensar sobre si mesmo pode refletir.

Quem realiza um tipo penal é apenas um pouco diferente dos outros personagens do processo criminal, pois existem tendências psicológicas que são comuns a todos e que sempre estão atuando.” (Criminologia Analítica, pág. 15) (grifos em itálico do original e em negrito nossos)

Velo, nesta obra, lança mão da psicologia analítica, de Carl Jung, para associar o fenômeno do crime, em uma perspectiva etiológica, à ideia de sombra, ou seja, o lado sombrio, obscuro ou negativo existente em cada um de nós.

Esta ótica nos recorda uma passagem emblemática de Carnelutti:

“Realmente, o Direito Penal é um direito das sombras, mas se não as atravessamos, como chegaremos à luz? Pelo menos, foi o que aconteceu comigo. Cada ser humano traça o seu próprio caminho e, particularmente, como a fisionomia de cada um, todos nós temos um caminho diferente. Durante todo o tempo em que me relacionei com as pessoas chamadas de homens de bem, não dei um passo sequer mais elevado, por me considerar uma delas. Conhecer os malfeitores foi o que me fez admitir, de fato, nunca ter sido melhor do que eles, e eles jamais terem sido piores do que eu; hoje, a experiência me leva a dizer que essa era a lição que eu, propriamente, como todo ser humano inclinado ao orgulho e à soberba, mais precisava aprender.” (As misérias do Processo Penal, Pág. 17)

Pode-se concluir que todos, em potencial, possuímos os impulsos criminógenos. No filme Batman, o Cavaleiro das Trevas, há uma frase de profundidade filosófica inestimável proferida pelo então Promotor de Justiça Harvey Dent: “Ou você morre herói, ou vive tempo o suficiente para se tornar o vilão”. Simples e fictícios dizeres; porém capazes de levar cada um de nós a uma relevante autorreflexão.

Aliás, a reflexão sobre heróis e vilões, sob uma perspectiva multidisciplinar, é um excelente contributo no sentido de questionar crenças inconscientes quanto ao crime em si e, por conseguinte, ao papel da advocacia criminal. Nesse contexto, em nossa pesquisa científica sobre o tema, chegamos a algumas conclusões sobre o fenômeno criminal e outras questões. O relatório da pesquisa pode ser conferido aqui:  , e um artigo repercutindo a busca de critérios objetivos para definir paladinos e criminosos, aqui.

E, para o contexto destas linhas, interessa em especial parte dos resultados da pesquisa, na qual estatisticamente se pôde constatar que 99% da população “somos criminosos”. Leia aqui.

Na obra Direito Penal e Individuação, diz Bruno Amabile Bracco:

“O ser humano precisa, ao menos enquanto não se pode guiar a si mesmo, de um pai repleto de regras, capaz de apontar caminhos a serem seguidos e a serem evitados, capaz de puni-lo se desobediente e assim capaz de, diz JUNG, orientá-lo em sua perplexidade.” (Direito Penal e Individuação, pág. 96)

“A expiação dos males por meio de bodes expiatórios é algo que muito satisfaz à coletividade. E é natural que isso ocorra. Atira-se para muito longe o fardo pesado em demasia para seguir por nós carregado.” (Idem, pág. 100)

Todos esses aportes nos permitem concluir que o vilão, o criminoso, o meliante, o inimigo, o “bandido”, e tantos outros adjetivos ouvidos por aí a “eles” atribuídos poderiam ser atribuídos também a nós mesmos, cidadãos em geral, em maior ou menor grau.

A propósito, a ideia de criar dicotomias simplistas, como a corriqueira divisão entre “bandidos” e “cidadãos de bem” é brilhantemente trabalhada por Alvino Augusto de Sá, em sua obra Criminologia clínica e psicologia criminal. Para o autor, é muito limitante nos prendermos a classes, grupos, categorias:

“(…) se nos prendemos rigorosamente a elas, sobretudo a categorias bipolares, que guardam entre si uma relação de oposição e de exclusão, corremos o sério risco de termos uma visão distorcida da realidade, mormente da realidade humana. (…) Nós não podemos ceder ao apelativo urgente para uma análise e compreensão profundas da realidade (no caso, da realidade da violência, do crime e do criminoso), a partir de categorias racionais ‘claras’ e ‘objetivas’, mas também acomodatícias, cuja ‘clareza’ e ‘objetividade’ nos dão segurança e conferem ao nosso discurso aquele impacto desejado. Categorias racionais muitas vezes bipolares e que, pela ‘clareza’ e ‘objetividade’ de sua bipolaridade, acabam nos cegando e obliterando nosso pensamento. Categorias do tipo, por exemplo: delinquente-não delinquente, justo-injusto, rico-pobre, explorador-explorado, vítima-vitimário, ressocializado-não ressocializado, ajustado-desajustado, etc. Se conseguirmos transcender a bipolaridade dessas categorias, talvez possamos, não simplesmente enxergar outras coisas na realidade, mas enxergar uma outra realidade nas coisas. (Págs. 165/166)

Ou seja, não defendemos pessoas em essência tão diferentes da população em geral. Daí, já surge uma possível conclusão parcial: nós, criminalistas, não somos tão maus assim, como a crendice popular costuma rotular. Às vezes, é exatamente o oposto: nossas atuações são resistências heroicas, contra investidas ilegais e abusivas, e em prol da liberdade e da justiça.

DIREITOS DO CIDADÃO INVESTIGADO, PROCESSADO, PRESO, CONDENADO

Pois bem. Culpados ou inocentes, os ditos criminosos têm direito àquilo que foi dito em uma passagem da série La Casa de Papel, frente aos abusos dos agentes ditos da lei: “La Justicia com garantias de derecho”. Vale dizer: para processar, condenar aquele que em tese descumpriu a lei, o Estado deve(ria) cumprir a lei.

Aliás, desde a investigação, antes mesmo de existir um processo, há uma gama de direitos fundamentais a serem preservados: inviolabilidade do domicílio, da intimidade, da comunicação, etc. Mesmo os definitivamente condenados ostentam, nos termos da lei, os direitos não alcançados pela sentença condenatória.

Daí a necessidade de se compreender a importância dos limites ao poder punitivo estatal, tanto quanto às previsões legais prévias de crimes e penas, quanto a um processo criminal justo.

Apenas para exemplificar, seguem alguns direitos do cidadão processado, seja ele culpado ou inocente, elencados quando da revelação do conteúdo do devido processo legal, colhidos dos embargos declaratórios no habeas corpus 185.051/SC (21/07/2020), de relatoria do Min. Celso de Mello:

“(…) postulado do due process of law”, cujo conteúdo, que se revela amplo, abrange, entre outras, as seguintes e relevantes prerrogativas de ordem jurídico-constitucional:

(a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à ampla defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito ao benefício da gratuidade; (g) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); (h) direito de presença e de participação ativa” nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes; (i) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (j) direito à igualdade entre as partes (paridade de armas); (k) direito ao juiz natural; (l) direito de ser julgado por Juízes e Tribunais imparciais e independentes; (m) direito à última palavra, vale dizer, o de pronunciar-se, sempre, após o órgão de acusação; (n) direito de ser presumido inocente até o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória; (o) direito ao recurso; e (p) direito à prova.” (destaques do original)

É fato: muitos desses direitos não podem ficar à mercê da autodefesa, em regra exercida por leigos, mas devem ser tutelados por advogado, versado nas ciências criminais e atento às próprias prerrogativas profissionais, para fazer com que sejam respeitados. A propósito, sequer aos advogados é recomendado defenderem a si mesmos, por lhes falecer, em regra, a objetividade e a dissociação necessárias; por isso nós advogados costumamos rechaçar a atuação em causa própria.

Pode-se perceber, a partir disso, o universo complexo e vasto chamado advocacia criminal.

Nessa toada, não há como deixar de trazer selecionadas palavras do imortal Rui Barbosa, no clássico O dever do advogado. Trata-se da célebre carta em resposta a uma indagação proposta por Evaristo de Morais Filho, sobre se atuar ou não em determinada defesa, a qual em tese poderia gerar conflitos morais, éticos e de consciência. Seguem memoráveis excertos:

“Todos se acham sob a proteção das leis, que, para os acusados, assenta na faculdade absoluta de combaterem a acusação, articularem a defesa, e exigirem a fidelidade à ordem processual. Esta incumbência, a tradição jurídica das mais antigas civilizações a reservou sempre ao ministério do advogado. A este, pois, releva honrá-lo, não só arrebatando à perseguição os inocentes, mas reivindicando, no julgamento dos criminosos, a lealdade às garantias legais, a equidade, a imparcialidade, a humanidade. Esta segunda exigência da nossa vocação é a mais ingrata. Nem todos para ela têm a precisa coragem. Nem todos se acham habilitados, para ela, com essa intuição superior da caridade, que humaniza a repressão, sem a desarmar.” (Págs.36/37)

“Eis por que, seja quem for o acusado, e por mais horrenda que seja a acusação, o patrocínio do advogado, assim entendido e exercido assim, terá foros de meritório, e se recomendará como útil à sociedade.” (Pág. 38)

“Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova: e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente.” (Pág.39)

Insofismável, portanto, a necessidade de qualquer acusado, e seja de qual for o crime, ser defendido por profissional preparado no plano técnico, e suficientemente destemido para, quando necessário, resistir a rompantes ilegais, ilegítimos, autoritários e abusivos.

A par disso, vejam-se exemplos de direitos de presos, provisórios ou condenados, cuja batalha diuturna para que existam no plano fático incumbem ao advogado: direito ao trabalho, aos estudos, ao chamamento nominal, às visitas, à assistência religiosa, familiar e à saúde, ao devido processo disciplinar.

Apenas por curiosidade, lembremo-nos ainda, em um exemplo emblemático, do direito previsto na Lei de Execução Penal, o direito à cela individual (!). A despeito de se afigurar aparentemente inexistente ou fictício no Brasil, encontra-se em pleno vigor:

“Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.

Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:

a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;

b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).”

Ah, o criminoso é investigado, processado e condenado porque descumpre a lei…mas o Estado, detentor da força e do jus puniendi sempre cumpre, não é mesmo?

(?)

Bem, então, a partir destas reflexões, buscando responder a nossa indagação inaugural: advogada ou advogado criminalista defende “bandido”?

DEFENDEMOS BANDIDOS OU NÃO?

Resposta(s): sim, não e talvez. Ou seja, “depende”, resposta normalmente utilizada por nós advogados.

No caso da resposta “sim”, ou seja, se o sujeito cometeu um ou mais atos reputados como sendo atos de “bandido”, para ser condenado, deve passar pelo crivo de um processo justo e de uma pena ancorada em bases legalmente estabelecidas. Ainda assim, cumpre trazer a ressalva: “bandido” não existe! O sujeito não pode ser punido pelo que é (Direito Penal do autor), mas pelo que faz (Direito Penal do fato). Vale dizer: ninguém “é bandido”, ou merece este termo pejorativo comumente utilizado. O sujeito, por ocasião da prática do delito, é legalmente considerado, após esgotadas as instâncias judiciais, um criminoso, pelo ato ou pelos atos contrários à lei penal. Tal qualificação, inclusive, é passível de ser purgada e revertida após a reabilitação criminal, instituto legalmente previsto. Ou seja, sim, às vezes defendemos pessoas às quais muitos rotulam como “bandidos”. E, sim, há pessoas que assumidamente têm no crime sua forma de vida, e chegam a se autoconsiderar “bandidos”; mesmo essas pessoas devem responder por seus atos sempre nos termos da lei.

Quanto ao “não”, se inocente aquele a nos procurar, este precisa de um advogado para provar sua inocência. Pois é: muitas vezes, na prática, o ônus da prova, o qual deveria ser da acusação em relação à culpa do sujeito, se inverte, exatamente como se fosse aplicada a lei consumerista, na qual a inversão do ônus da prova é positivada na lei.

E o “talvez”, justamente porque erros judiciários acontecem, e muitos deles infelizmente jamais serão descobertos…e sequer os defensores, por vezes, sabem se seu constituinte é culpado ou inocente…

Ainda, é certo que há fatos os quais, embora efetivamente tenham ocorrido, não se revestem de caráter criminoso; existe uma hipótese de absolvição própria para tais casos na lei processual penal. Há fatos que já foram ou deveriam ter sido esquecidos pela Justiça, pois em não tendo sido obedecido o direito fundamental à razoável duração do processo, estão submetidos à prescrição, e/ou já se encontram na órbita do direito ao esquecimento, pois o tempo já cumpriu seu mister e a pacificação social, objeto maior do Direito Penal, já foi atingida.

Há, também, fatos isolados na vida de um cidadão, os quais não se reputam suficientes para qualificá-lo como um criminoso, ou, como preferem alguns, “bandido”. Como exemplo temos o dito crime dos crimes, o homicídio: este invariavelmente é delito de momento, fruto de explosão emocional extremada, ato ilhado no desatar biográfico de alguém, pois em todo o restante de sua vida o sujeito pode ter cometido somente aqueles “crimezinhos socialmente tolerados” do dia a dia: violação de direitos autorais, embriaguez ao volante, injúria, sonegação fiscal, etc. Dizendo de outra maneira, sequer o homicida, o qual atinge o bem jurídico vida, sem o qual os demais não podem ser exercidos, pode ser considerado “bandido”. Os estudos criminológicos apontam que, diferentemente de delitos outros, como o roubo, o estelionato ou o tráfico, qualquer um de nós está, em tese, sujeito à sua prática.

Pois bem. Particularmente, ao longo dos anos, naturalmente construí minhas próprias impressões subjetivas acerca da advocacia criminal. Ajudei muita gente, manejando o poder conferido pelas leis, a manter ou recobrar a liberdade sob ataque ou ameaça.

Compreendo, vivencio e testemunho sobre a humanidade, a nobreza e a complexidade inerentes à prática da advocacia criminal.

Já atendi, apenas para citar alguns exemplos: policial, empresário, vigia, professor, guarda municipal, aposentado, político, médico, agente penitenciário, estudante, dona de casa, advogado…e até “bandido”! Gente culpada, gente inocente…crimes graves, crimes de menor potencial ofensivo…crimes de sangue, crimes de colarinho branco…

Fui inclusive advogado de presídio, e costumo definir esse tipo de estabelecimento como um “microcosmo” em relação à sociedade aqui de fora: tem de tudo um pouco, e não “só bandido”, como insiste credulamente o senso comum em sentenciar. Aliás, estatisticamente falando, concluo, como muitos estudos e estudiosos o fazem, que grande parcela dos internos não é composta de “bandidos” (sempre com aspas mesmo), mas de pessoas que só conhecem a presença do Estado diretamente em sua faceta persecutória e repressora. Muitos nunca tiveram a atenção de um médico público, não têm saneamento básico, não conhecem uma escola estruturada com professores bem remunerados, não dispõem de asfalto na rua…mas já foram abordados várias vezes pela polícia.

Não poderia deixar de transcrever, uma vez mais, algumas palavras de Carnellutti, sobre esses arcabouços medievais denominados penitenciárias:

“A primeira coisa que a experiência penal nos ensina é que a penitenciária não é, absolutamente, diferente do resto do mundo, tanto que ela é também um mundo e, como tal, uma grande casa de penitências. Esse conceito de que na penitenciária só estão os canalhas e os homens honrados fora dela não passa de uma ilusão, como também é ilusório o conceito de que um ser humano possa ser totalmente canalha ou totalmente decente.” (As misérias do Processo Penal, pág. 123)

 

A MISSÃO DA ADVOCACIA CRIMINAL

Em suma: a missão da advocacia criminal, em sendo esta parte da tríade processual, em conjunto com o Poder Judiciário e o Ministério Público, é a de ajudar a consolidar a justiça. Além de trazer aos autos o contraponto à acusação, o outro lado da moeda – vez que “a denúncia é um rascunho, uma proposta”, como disse certa vez Afrânio Silva Jardim – ao advogado criminal incumbe também exercer a compreensão, a humanidade junto àquele execrado por todos ou quase todos. E, invariavelmente, também a seus familiares, cujas agruras da persecução penal e da reprimenda em regra acabam por respingar, especialmente quando o implacável jus puniendi estatal atinge o nível do encarceramento.

E, como advogado criminalista, posso afirmar, ao menos em minha convicção subjetiva: a “vingança legal”, assim definida certa vez por Nelson Hungria, consubstanciada na pena impingida ao condenado, deve sim ser a ultima ratio, como pretende – ao menos no plano teórico – O Direito Penal.  E sempre, sempre de acordo com a lei, tendo em conta a dignidade da pessoa humana, infelizmente algo legendário para muitos.

O Direito Penal, a despeito de suas atuais imperfeições, evoluiu muito desde os primórdios. Houve a vingança privada, houve a Lei do Talião. O denominado período humanitário, de raízes iluministas, repercute a dignidade da pessoa humana no contexto dos limites ao poder de punir. Esta evolução milenar tem sua razão de ser, e muitos dos instrumentos técnicos e pragmáticos desta evolução filosófica e dogmática dependem da advocacia para ser efetivados, implementados.

À advocacia incumbe, precipuamente, quando no papel da defesa, apresentar o contraponto consistente no próprio limite à vingança estatal, por vezes irrefletida e fomentadora de um círculo vicioso infindável de violência. Segundo Alvino Augusto de Sá, a vingança é catártica e momentânea, trazendo uma satisfação efêmera e portanto demandando novas vinganças, diferentemente de uma busca efetiva pela paz, fundada em uma nova visão do ser humano (obra citada, págs. 176/177).

Por tudo isso e muito mais, a advogada ou o advogado criminalista é, insofismavelmente, indispensável à Administração da Justiça. Afinal, como disse o grande advogado por formação, Ghandi, cujo título Mahatma significa “grande alma”: “Olho por olho, e o mundo acabará cego”.

 

Por Fabricio Almeida Carraro – advogado, treinador jurídico e mentor de advogados

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRACCO, Bruno Amabile. Direito Penal e processo de individuação. Um estudo junguiano sobre os impactos das leis penais na sociedade. 2012. 248 f. Dissertação. Mestrado em Direito Penal – Faculdade de Direito da USP, São Paulo.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. Campinas-SP: Servanda Editora, 2016.

CARRARO, Fabricio Almeida. Heróis & vilões: existem critérios objetivos para defini-los? RT Sul, v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais. pág. 277. 2015.

JARDIM, Afrânio Silva – Debate sobre Processo Penal – 4º Congresso Jurídico de Ciências Criminais – Complexo de Ensino Renato Saraiva – 06/11/2015.

Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1997.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. Prefácio Carlos Vico Mañas. 4 ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

VELO, Joe Tennyson. Criminologia Analítica: conceitos de psicologia analítica para uma hipótese etiológica em criminologia. São Paulo: IBCCrim, 1998.

Author

Fabricio Almeida Carraro - Coach Jurídico (Formação em Coaching, Master Practicioner em PNL e Pós-graduação em PNL e Coaching) e Advogado formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

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