Parte 1 ou “O direito à intimidade e à vida privada em um mundo conectado”

Pra começar: estou aqui online falando de estar off-line! E você, leitor, está agora online, certo?

Uma pergunta: em tempos de tantas ofertas com internet super-rápida, ilimitada, hiperconectividade, falar em “direito” de estar off-line ao invés de “dever” de estar off-line…pode isso? Não é estranho?

Pois é, tem gente querendo exercer esse direito.

Dia desses em um aeroporto vi alguns (isso, “alguns”, e não apenas um) livros com títulos do tipo “como se livrar do celular”. As capas são sugestivas. Veja uma delas, da obra de Catherine Price:

Recentemente, a revista VOCÊ S.A. também publicou matéria de capa com uma imagem que parece definir a relação de muitas pessoas com o smartphone:

 

No texto se pode encontrar dados alarmantes. A leitura da reportagem é recomendável, ela traz vários exemplos problemas e soluções trazidos pelas pessoas entrevistadas, diversas pesquisas científicas, e inclui citações do livro mencionado acima. Segue trecho preocupante, retirado da introdução da matéria:

“Várias pesquisas mostram que estar 100% do tempo online auxilia no surgimento de doenças como ansiedade, depressão, estresse, déficit de atenção e até transtorno obsessivo-compulsivo”. (edição 245, outubro de 2018)

Não por acaso, já é notória a existência de clínicas de “desintoxicação digital”.

Obviamente, o direito subjetivo de estar off-line não exclui o direito de estar online. O Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014) assegura o acesso à web, em seu art. 7º, ao passo em que também garante a intimidade em seu inciso I.

Claro que há momentos em que precisamos ou desejamos estar no “universo paralelo” digital. Mas há também momentos em que necessitamos – ou simplesmente queremos (não é?) – estar fora do mundo virtual.

E nessa perspectiva, trata-se do exercício de um direito. Mais precisamente de um direito humano, o próprio direito à intimidade e à vida privada (Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 12º, Constituição Federal, art. 5º, X, Código Civil, arts. 20 e 21), em uma de suas múltiplas dimensões. Intimidade e vida privada são distinguíveis, segundo alguns, e se confundem, segundo outros. De qualquer sorte, a discussão não é objeto deste texto.

Claro que é comum a pessoa, por si só, abrir mão da intimidade e da vida privada, compartilhando deliberadamente suas informações, suas imagens, seus momentos, suas vidas nas redes sociais. E, nesse caso, naturalmente, o comportamento de estar online e expor dados não advém de uma pressão ou imposição externa, mas surge da própria decisão do sujeito – ainda que fruto talvez de uma espécie de “vício”, como já se tem definido. Aí, poderíamos até reacender a antiquíssima discussão filosófica acerca do livre arbítrio, porque poder-se-ia tratar de uma “imposição interna”.

Nesse contexto, responda honestamente para você mesmo: se e quando você quiser, você consegue ficar off-line por muito tempo? Por quanto tempo?

Voltando às bancas, um pouco mais recentemente, a revista Superinteressante publicou matéria associando o vício do celular ao vício do cigarro. A imagem de capa talvez diga mais do que mil palavras:

Há muitos dados na reportagem reproduzidos da reportagem da Você S.A. citada anteriormente. Ah, ambas são muito ricas em conteúdos, caso você queira saber mais, assim como os livros sobre o assunto também provavelmente o são. Recomendamos a leitura, caso haja interesse, pois nosso propósito aqui é outro:           apenas chamar a atenção para esta realidade.

Voltando a falar em possível tolhimento ao livre arbítrio, desde já vale transcrever este trecho da matéria tratando sobre o “novo cigarro”, e a partir daí cada um tecer suas próprias reflexões em termos de existência ou não de livre arbítrio:

O smartphone já vicia mais gente, e de forma mais intensa, do que o cigarro. Vivemos grudados em nossos smartphones porque eles são úteis e divertidos. Mas o que pouca gente sabe é o seguinte: por trás dos ícones coloridos e apps de nomes engraçadinhos, as gigantes da tecnologia fazem um esforço consciente para nos manipular, usando recursos da psicologia, da neurologia e até dos cassinos.” (Pág. 22, edição 408, outubro de 2019) (grifamos)

Pois bem. Enquanto tratamos do status off-line enquanto sendo um direito, evidentemente a partir do momento em que existe uma “força maior”, uma “coação”, ou mesmo um “vício” de vontade (vício aqui colocado no duplo sentido) impondo o status online, talvez esse direito esteja sendo vilipendiado.

Não por acaso, na mesma reportagem, há notícia de que os órgãos de controle jurídico nos EUA já estão se movimentando. O governo abriu uma investigação antitruste contra a Apple, que poderia estar bloqueando apps de terceiros. E o Congresso debate uma lei para proibir a rolagem “infinita” de tela e a execução automática de vídeos (págs. 30 e 31).

Deixando o assunto do livre arbítrio de lado, é claro que às vezes, não só pressões interiores, mas também exteriores, podem tolher o direito de estar off-line. E é claro, a partir do momento no qual o acesso ao mundo virtual se mostre como algo obrigatório, o direito de estar off-line, à vida privada e à intimidade, pode ser considerado como sendo oficialmente desrespeitado.

Cite-se como exemplo de desrespeito a tal direito o caso do funcionário obrigado a ficar online, à disposição do empregador mesmo fora do horário do expediente, reconhecido em decisão do Tribunal Superior do Trabalho no Recurso de Revista n° TST-RR-1260-79.2013.5.02.0001, a qual pode ser conferida aqui.

Segue trecho pertinente da ementa:

“Configurada a participação do trabalhador em escalas de atendimento, em regime de plantão, podendo ser chamado por telefone ou outro meio de telecomunicação, há restrição à liberdade de locomoção do trabalhador pela submissão a um estado de prontidão, hipótese em que se aplica o entendimento sedimentado na Súmula 428, II, do TST, segundo o qual “Considera-se em sobreaviso o empregado que, à distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso.”. Recurso de revista conhecido e provido.” (grifamos)

Há notícia de uma legislação francesa abordando o direito de estar offline, conforme você pode conferir aqui.

Evidentemente, o direito de estar off-line está relacionado ao direito de estar só.

No artigo “A tutela do direito à intimidade e à privacidade perante o avanço das redes sociais”, os autores Maria Victória Antunes Creste e Wilton Boigues Corbalan Tebar comentam o direito à solidão no momento atual:

“O direito de estar só, também conhecido como the right to be let alone, é um dos direitos da personalidade (faz parte do rol da integridade moral), ou seja, inerente à pessoa humana e a ela ligado de maneira perpétua e permanente, sendo também inalienável. Esse direito é considerado um direito fundamental por ser um desdobramento da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal.” (Disponível em: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/download/6162/5865)

Citam em seguida interessante trecho do livro “O Direito de estar só”, de Cezar Roberto Bittencourt, onde se pode ler o seguinte acerca da importância da intimidade:

“A necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna; de manter-se a pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da curiosidade dos olhares e dos ouvidos ávidos. ” (JUNIOR, Paulo José da Costa. Direito de Estar Só: Tutela Penal da Intimidade. – Ed. – São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais S.A, 1970., pág. 8)

Há quem diferencie solidão, indesejada e de efeitos deletérios, de solitude, voluntária e de impacto positivo. Leia  aqui.

O filósofo Schopenhauer associou a solidão à liberdade:

“O homem só pode ser si mesmo por completo enquanto estiver sozinho; por conseguinte, quem não ama a solidão, não ama a liberdade; pois o homem só é livre quando está sozinho.” (Aforismos para a sabedoria de vida,  disponível no link: http://imagomundi.com.br/filo/schopenhauer_aforismos.pdf)

Ah, sim, tem gente online pesquisando sobre estar off-line. A conclusão surge a partir da constatação de que a busca “pronta” já existe no histórico do Google. Apenas digite “estar off-line” e confira.

Ou seja, há interesse nisso, no status off-line. E se há interesse, o Direito, enquanto superestrutura normativa, pode garantir a satisfação deste interesse, caso ele seja ameaçado ou desrespeitado? Se sim, como? Eis o cerne de uma possível reflexão jurídica, talvez uma das mais relevantes dos próximos anos.

Nesse cenário, vamos então refletir um pouco acerca da importância e dos benefícios do direito de estar off-line. Na parte dois deste trabalho falaremos um pouco sobre isso, e sobre colocar em prática o exercício deste precioso direito subjetivo, em especial sob o prisma do desenvolvimento humano.

Por Fabricio Almeida Carraro

Treinador jurídico e advogado

Author

Fabricio Almeida Carraro - Coach Jurídico (Formação em Coaching, Master Practicioner em PNL e Pós-graduação em PNL e Coaching) e Advogado formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

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